Transplantes em Portugal

23 de outubro de 2008

"Em Portugal não há escassez de órgãos, o problema está nas hierarquias, nas equipas, na coordenação", explica José Fragata, director do Serviço de Cirurgia Cardiotorácica do Hospital de Santa Marta. Consequências? "Perdem-se muitos dadores porque as Unidades de Cuidados Intensivos não estão sensibilizadas. Por isso, no início do ano, criou-se a figura do coordenador", salienta o presidente da Sociedade Portuguesa de Transplantação (SPT), António Morais Sarmento. Já estão nomeados 43 médicos, em 37 centros hospitalares, e a sua missão é identificar que doentes nos Cuidados Intensivos são potenciais dadores. A informação é depois transmitida ao respectivo Gabinete de Coordenação de Colheita de Órgãos e Transplantação - nos hospitais de São João e Santo António, no Porto; HUC, em Coimbra, e São José e Santa Maria, em Lisboa.

"A última coisa que se pretende é que um órgão vá para o balde", salienta a responsável nacional, Maria João Aguiar. A anestesista reconhece que há menos desperdício, contudo falta dar um passo de gigante: "Estamos a lutar para recolher órgãos em doentes com paragem cardio-respiratória, como se faz em toda a Europa. Aliás, os serviços de emergência espanhóis fazem-no há 16 anos". E aqui, o papel principal é do INEM. "A vítima, por exemplo, de um AVC gravíssimo é mantida com manobras de reanimação. Os médicos no hospital confirmam a paragem cardio-respiratória, esperam cinco a dez minutos, retomam a massagem, levam a pessoa para o bloco e fazem a colheita", simplifica. O procedimento só ainda não é feito porque, mais uma vez, faltam equipas bem preparadas. "É preciso investir pouco dinheiro e muita organização", resume Maria João Aguiar.

Também é necessário mudar mentalidades. Em Portugal, só não é dador quem estiver inscrito no Registo Nacional de Não Dadores - com 38.148 nomes - , mas muitos familiares contestam a recolha de órgãos dos seus entes. Nestes casos, "é preciso explicar que se morre quando o cérebro deixa de funcionar e não apenas quando o coração pára. As pessoas ficam como flores que se cortam e colocam numa jarra, parecem vivas mas não estão", afirma a médica. "A nossa lei é muito liberal, mas as coisas não são como seria de esperar. Metade dos transplantes nos países nórdicos são de dadores vivos e nos povos ibéricos são de cadáveres, porque as pessoas não têm informação e há medo", afirma o presidente da SPT. António Morais Sarmento diz mesmo: "Luta-se mais pelo lince da Malcata do que pela dádiva de órgãos". Ainda assim, no início do ano foi dado outro passo. Passou a ser permitido que não aparentados, como marido e mulher, sejam dadores vivos entre si.

Como se faz a colheita

  1. Os familiares do doente internado na Unidade de Cuidados Intensivos são informados de que o parente está em morte cerebral e há a hipótese de ser dador de órgãos
  2. Seis horas após o diagnóstico, um neurologista, intensivista ou anestesista confirmam a morte cerebral com um exame de estímulos. Em caso de dúvida, recorre-se, por exemplo, à angiografia cerebral, injectando um contraste - que num cérebro morto não vai além das veias do pescoço
  3. O ventilador é desligado e o doente levado para o bloco operatório. Como em qualquer cirurgia, a extracção dos órgãos é feita com o coração a bater.
Números

19.284
portugueses foram submetidos a transplantes até ao final do ano passado. O rim é o órgão que há mais tempo é utilizado pelos médicos, desde 1980, e que beneficiou o maior número de doentes, 7612 até 2007. Córneas (5212), medula (3649) e fígado (2299) são os restantes líderes da transplantação. Ao invés, o coração (419) e o pulmão (18) são os menos transplantados.

252
é o número de dadores cadáver em 2007, mais 52 do que em 2006. Os hospitais de São José e da Universidade de Coimbra lideram a lista. A maioria (58%) dos doentes morreu devido a causas médicas e os restantes (42%) por traumas, como acidentes rodoviários. A idade média dos dadores foi de 47 anos e tem sido possível retirar três órgãos diferentes por dador.

Custos
Estado pagou €38 milhões em incentivos

Transplantar um órgão é uma tarefa muito complexa, sem dia nem hora marcados e o Estado premeia quem a executa. Em 2007, transferiu directamente para os hospitais com gabinetes ou centros de transplantação incentivos superiores a €38 milhões.

Do total, 40% foi atribuído à transplantação hepática (de fígado), com os hospitais Curry Cabral, em Lisboa; Santo António, no Porto, e da Universidade de Coimbra a receberem a totalidade da verba.

A medula foi premiada com 34% da oferta, assumindo uma posição de destaque os IPO do Porto e de Lisboa por terem realizado a maior parte das intervenções. Não há regras de distribuição e cada hospital distribui o prémio como quer, mas quase sempre guarda a maior parte para si. As equipas de transplantes dividem o que sobra e que em certos casos são pequenas fortunas.

Transplantes pediátricos

'Nos últimos anos em Portugal não morreu nenhuma criança em lista de espera para transplante como aconteceu noutros países'. A garantia é dada pelo único cirurgião hepático pediátrico no país, o médico dos Hospitais da Universidade de Coimbra Emanuel Furtado. A estatística é dourada, contudo, tem um senão - a captação de órgãos aumentou, mas trouxe dificuldades novas. 'São dadores com idades cada vez mais avançadas e muitas vezes com patologias associadas e isso desfavorece as crianças'.

O transplante de rim e de fígado em idade pediátrica, até aos 14 anos, é pouco comum e nos HUC, pioneiros há 14 anos, a média de intervenções não vai além de 12 por ano e de 154 no total. 'Daí ser difícil abrir outro centro no país. O número de casos é muito baixo para permitir treinar e garantir a qualidade dos transplantes'. Ainda assim, Emanuel Furtado está há um ano a tentar envolver outros médicos, 'mas com o ritmo actual só estarão formados daqui a muitos anos'. A solução, diz, 'está no empenho das instituições para que os actuais e os novos profissionais na transplantação possam ter formação nos grandes centros internacionais', com custos elevados.

Fonte: http://aeiou.expresso.pt/gen.pl?p=stories&op=view&fokey=ex.stories/430663

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