Uma história de presente a todas as Crianças com doença renal, no dia da Criança

1 de junho de 2007

A História do menino que tinha uma borbulha

Nada foi deixado ao acaso ou ao improviso para receber o Nuno naquele final de Setembro. Até o mês de nascimento, no fim do Verão, nem frio nem calor, licença de maternidade ampliada pelas férias. Perfeito.

Como perfeita tinha sido a gravidez. Primeiro filho de um casal jovem, ambos saudáveis, não se conhecia também nenhuma doença naqueles quatro, ansiosos por ascender, finalmente, ao estatuto de avós. O seguimento tinha sido meticuloso, com a regularidade aconselhada, todas as recomendações seguidas com rigor, os exames complementares adequados, a vigilância ecográfica habitual dos parâmetros biométricos e morfológicos do feto, a medicação cumprida e as prescrições nutricionais observadas. A normalidade de todos os parâmetros, o passar do tempo sem complicações, a felicidade na face da futura mãe, tornavam serena e deliciosa aquela espera pela chegada do filho e do neto.

O Nuno nasceu de parto eutócico, às quarenta semanas, peso de 3,5 Kgs, 50 cm de comprimento. Chorou de imediato, começou a mamar pouco depois e a observação pediátrica foi como se esperava, o exame físico era perfeitamente normal. Pais e avós, felizes, finalmente “graduados” nas respectivas categorias pelo seu bebé.

Aqueles dias na maternidade são preciosos para a família. Sob o olhar atento e sob a vigilância e orientação dos profissionais, os “recém-graduados”, dão os primeiros passos no desempenho do papel que lhes ocupará a vida daí por diante.

Lá em casa tudo preparado, ensinamentos bem presentes, todo o apoio necessário, a tranquilidade própria das felicidades imensas.

Do programa fazia parte a “picada do pé” e pelo oitavo dia o Nuno foi à maternidade fazer a colheita para o rastreio neo-natal. Os pais estavam felizes, orgulhosos da sua independência no cuidar do Nuno, ansiosos de mostrar isso mesmo aos profissionais.

- Tudo bem?
- Tudo óptimo. Só apareceram ontem umas borbulhas aqui no peitinho mas de resto tudo bem.
- Umas borbulhas? Vamos despir e ver.

Pústulas, no tronco sim ,mas também na face, no couro cabeludo, nos braços.

- Mas ontem só tinha no peitinho.

O aspecto não deixava dúvidas, uma possível infecção estafilocócica, impunha que o Nuno fosse internado para fazer estudo adequado, tratamento por via endovenosa. A sua idade não permitia outra decisão.

Os pais compreenderam que seria algo para alguns dias, estava tudo tão bem, uma pequena complicação.

O grande Hospital meteu medo. Tanta coisa, súbita e inesperada, tanto bebé tão pequenino e frágil, tanta máquina. O Nuno era grande, felizmente, e não estava ligado àqueles aparelhos todos.

- Temos que repetir as análises do Nuno. Discutiu-se na visita…
- Tem uns valores “estúpidos” de ureia e creatinina. Ele está tão bem….

Repetiu-se e confirmou-se. Uma ureia de 156 mg/dl e uma creatinina de 4,89 mg/dl, num recém-nascido são absolutamente invulgares e de inspirar a maior das preocupações em relação à função e sobrevida renal.

Mais exames complementares e diagnostica-se: insuficiência renal crónica congénita por displasia renal. Vistos e revistos os exames pré-natais, liquido amniótico sempre de volume normal, rins presentes bilateralmente, sem dilatações da árvore excretora, bexiga normal.

A médica informa os pais, ciente da gravidade e preparada para a avalanche que estava prestes a desencadear.

- Insuficiência renal? Ureia, creatinina altas? O que é isso? Foi por causa das borbulhas? Não? Então, se não fossem as borbulhas…

- Sim, só o saberíamos dentro de alguns meses quando o Nuno adoecesse com vómitos, ou não crescesse…

- Mas porquê nós? Não pode ser! A negação. A rejeição.
- O que é que eu fiz? Eu segui direitinho tudo o que os médicos disseram! A culpa
- Porque é que o médico não viu isso? A culpa
- O que vai acontecer? O medo. O desconhecido.
- Diálise e transplante? Nesta idade? É possível? Quando? O medo. O desconhecido

A médica colocou aos pais todos os cenários. Questionaram-se em conjunto. Qual seria o menos mau?. Se se tivesse diagnosticado precocemente na gravidez o problema do Nuno, nasceria ele? Se diagnosticado mais tarde, como teria decorrido aquela gestação carregada pela ansiedade da incerteza na sobrevida fetal? E tudo isso comparado com a situação presente?

Mas o Nuno está ali, aparentemente tão bem. Benditas borbulhas, fez-se um diagnóstico mais precoce, pode-se intervir desde já. E há soluções!

- O que podemos fazer? Como podemos ajudar? A aceitação, por final.

A Internet! É isso, a fonte de todas as certezas e de todas as soluções.

A mãe navegou, navegou, informou-se, subscreveu o nephkids, lista para pais de crianças com doença renal moderada por um estudante de medicina, ele próprio transplantado renal. Pais de todo o mundo trocam impressões e informações, ajudam-se, confortam-se.

A médica, meia intrusa, lurker, segue as mensagens do nephkids, diariamente. Aprende a reconhecer o tipo de dúvidas possíveis dos pais, regista o que é útil para outros pais que não navegam em coisa nenhuma. Leu e reconheceu as questões postas pela mãe na lista e a assinalável capacidade de exposição do quadro clínico. Em silêncio, seguia curiosa as respostas, contente com a iniciativa da mãe.

No dia seguinte e em todos os dias seguintes, sorria com uma meia cumplicidade gerada por aqueles encontros nocturnos insuspeitos, antecipando a reacção da mãe à confrontação entre as respostas na Internet e a sua prática.

De todo o mundo e do nosso País a mãe recebeu testemunhos de casos semelhantes ao Nuno. Sim, muitos com passado pré-natal insuspeito. Aquele americano (como é possível, lá?) foi diagnosticado pelos 8 meses quando o peso e comprimento não progrediam. As mães do nephkids tranquilizaram a mãe. Os seus médicos estão a fazer tudo o que deve ser feito…

Confortada com a aprovação no teste da ciberavaliação, a médica escreveu `a mãe, cumprimentou-a pela qualidade da exposição do caso do Nuno e pela atenção recebida da lista.

Desfez o embaraço da mãe, os médicos já estão habituados…a nephkids é uma boa lista, bem moderada, pode e deve continuar, é muito útil. O Messenger? Sim, concerteza, podemos, junte-me lá aos seus contactos. Quem não agradece ao Sr Bill Gates tal benefício? Será que é ele que merece as honras? Nós, “ignorantes anónimos” da informática, desconhecemos os verdadeiros pioneiros como Steve Jobs...

A partir daí, médica e mãe partilham momentos em noites de conversa, que se alarga para lá do que rodeia a saúde do Nuno. No espaço virtual quebraram as barreiras do espaço real, desapareceram a mãe e a médica, ficaram as amigas. Há “Nunos” capazes de coisas assim. Os nossos pequenos doentes, “mini” e às vezes “micro”, podem gerar “macro” atitudes e iniciativas. São os nossos “micro-macro”, quem os não tem no espaço pediátrico?

O diagnóstico ecográfico pré-natal de uropatia malformativa tem cerca de 20 anos. É muito pouco tempo para que esteja totalmente esclarecido se pelo facto de se identificar alterações morfológicas in útero, se consegue determinar a natureza e o significado dessas situações ou mesmo interferir na evolução natural das anomalias detectadas.

Assumem particular relevo, neste contexto, as dilatações da pelve renal, muito frequentes, com uma prevalência aproximada de 4,5 % das gestações. Estas não são uma entidade patológica no sentido restrito mas antes um sinal ecográfico já que podem ser a expressão de um fenómeno transitório ou associar-se a refluxo vesico-ureteral ou obstrução incipiente, entre outros. Sabe-se que menos de 10% destes casos vêm a justificar no futuro procedimentos invasivos designadamente cirúrgicos.

A dúvida em relação aos diferentes e possíveis significados destas dilatações, tem causado e permanece como motivo da maior controvérsia na comunidade científica. Como sempre, o que sobra em dúvidas para os médicos, amplia-se em ansiedade para os pais.

A grande questão actual é saber se se justifica preconizar a realização de exames invasivos, como urografia, cistografia, exames de medicina nuclear, análises, em todas ou algumas destas crianças e ainda submetê-las a profilaxias prolongadas com eficácia ainda não comprovada.

Mais ainda, optar por procedimentos invasivos em crianças totalmente assintomáticas transformadas em doentes à luz dos resultados de exames complementares e envidar por procedimentos invasivos de indicação questionável, quantas vezes por força do marketing científico, de opinião ou mesmo comercial.

O Nuno não tinha qualquer dilatação ecográfica pré-natal e a sua situação é preocupante, das extremas, embora rara. O diagnóstico pré-natal, no seu caso, alteraria o prognóstico? Não. As lesões foram instaladas precocemente in útero e são irreversíveis, como se sabe, pela sua natureza displásica.

Ao contrário, a maior parte das ectasias piélicas não tem significado patológico. Nas que o tiverem a intervenção pós-natal pode interferir na evolução, designadamente pela correcção de obstrução ou diagnóstico e tratamento precoce da infecção urinária, se associada.

Mais do que a dilatação piélica isolada e a sua magnitude, interessa saber reconhecer as dilatações que têm probabilidade de se associar a patologia importante nefro-urológica designadamente as que acarretem risco de compromisso funcional renal como a obstrução. E ter o senso de solicitar o mínimo de exames necessários para o respectivo esclarecimento. Envolver sempre os pais nas decisões como preconiza a Academia Americana de Pediatria na sua secção de Urologia Pediátrica.

Saber e senso, como em tudo.

Os protocolos são úteis. Não podem, todavia, constituir substituto cómodo para o saber e o senso.
Há-os para todas as possibilidades. Estudo pós-natal alargado se as dimensões piélicas forem iguais ou acima de 10mm (protocolo nacional) 15mm (protocolo espanhol) ou 20 mm (reino unido), para já não mencionar as indicações de sim ou não à profilaxia e da duração variável. Os protocolos têm variado ao longo dos anos à medida que a experiência tem conferido segurança e confiança aos clínicos e sempre no sentido de alargar as dimensões para lá das quais se intervém. Como serão daqui por mais 20 anos e qual será o julgamento que nós ou outros, faremos da nossa actuação presente?

Ao estudo indiscriminado, cego, opõe-se e impõe-se a individualização das atitudes com

saber e senso porque, como escreveu Gregório Maraňon

A verdade, a que parece mais firme, não é mais que
o esboço duma verdade mais acabada mas que nunca está completa de todo,
e só assim deve ser interpretada e julgada.


1 comentários:

Maria Almeida disse...

São enumeras as partidas que a vida nos coloca. Conseguir ultrapassá-las quando temos alguém junto de nós é óptimo mas, se temos ainda perto de nós vários "alguéns" que estão ou já estiveram na nossa situação, a força é maior!
Ainda bem que existe este sentimento de inter ajuda entre diferentes papás e entre papás e médicos, e ainda bem que existe sempre alguém disposto a dar o seu melhor para dar um pouco mais às tantas verdades que a vida tem. As verdades, aquelas que procuram desmesuradamente atenuar as partidas que a vida coloca.