Dia-a-dia do Miguel (em diálise peritoneal)

31 de março de 2007

Vou tentar descrever-vos um dia de semana típico do meu filho Miguel. O Miguel tem 3 anos, nasceu com insuficiência renal crónica, e desde os 10 meses que faz diálise peritoneal.

De manhã:

  • Desconectar da máquina de diálise peritoneal (chama-se cicladora e é igual à da imagem), em ambiente estéril, isto é, utilizando máscara e lavando e desinfectando as mãos. As máscaras e o desinfectante das mãos fazem parte da entrega mensal que recebemos da Baxter, a empresa com quem o hospital tem acordado o fornecimento da diálise peritoneal. Esta entrega é feita sem qualquer custo para o paciente.
  • Ao pequeno-almoço bebe um leite especial (não comparticipado), acrescido de Fantomalt, um suplemento nutricional (também não comparticipado).
  • Toma 3 medicamentos para a insuficiência renal, cedidos gratuitamente na farmácia hospitalar.
Durante o dia:

  • Frequenta a escola a tempo inteiro, participando nas actividades normais para a sua idade, incluindo a ginástica.
  • Ao almoço toma mais uma vez o suplemento nutricional (não comparticipado) e ao lanche toma mais um medicamento para a insuficiência renal (não é cedido gratuitamente, mas é por escolha nossa, porque preferimos dar-lhe um medicamento com sabores de fruta, que não está disponível na farmácia hospitalar).
Fim da tarde:

  • Da escola, vamos imediatamente para casa, onde é conectado à máquina de diálise, de novo em ambiente estéril, para uma troca do líquido que está no peritoneu (na barriga). Esta troca faz-se em cerca de 10 minutos e logo depois ele é desconectado. Segue-se uma permanência de cerca de 3 horas, em que estamos livres para fazermos o que quisermos.

  • Ao fim dessas 3 horas, geralmente é hora do banho. Após o banho, mudamos o penso que protege o orifício de entrada do catéter de diálise peritoneal. Utilizamos soro fisiológico e Bactroban, uma pomada anti-bacteriana (ambos não comparticipados). Apenas nos fornecem compressas e adesivo. Simultaneamente, é de novo ligado à máquina de diálise, para uma nova troca de líquido.
  • Antes de jantar, toma 4 ou 5 medicamentos para a insuficiência renal (depende dos dias), todos cedidos gratuitamente. Por vezes, ao jantar, ainda toma o suplemento nutricional.
Noite:

  • Antes de ir dormir toma mais um medicamento para a insuficiência renal e uma injecção (ambos cedidos gratuitamente). Neste momento, ele está dependente de dois medicamentos que só estão disponíveis em forma de injecção. Nós alternamos os dias em que damos uma ou outra.
  • Geralmente, volta a beber o seu leite especial, com o suplemento nutricional.
  • Depois de adormecer é novamente ligado à máquina, para uma noite de 9 horas de tratamento.Os dias não são todos iguais, claro, mas esta rotina é muito semelhante, porque os passos que referi são praticamente obrigatórios.
Espero ter elucidado como é, para nós, viver na prática com diálise peritoneal. Quando o Miguel iniciou a diálise, ainda bebé, não conseguia imaginar conciliar tudo isto com o resto da vida real. Mas hoje em dia temos estes passos completamente integrados com o resto das nossas actividades. Eu costumo dizer que, nas 24 horas que o dia tem, o Miguel consegue fazer tudo o que os outros meninos fazem... e ainda mais!! São 24 horas muito bem aproveitadas!!

10 comentários:

Helena Jardim disse...

Marta, obrigada pelo seu testemunho, ele é precioso para os profissionais de saúde...tem pormenores que ultrapassam a conversa na consulta.

Tem também áreas em que é preciso trabalhar - o fornecimento dos suplementos nutricionais, a melhor forma de administrar outros fármacos aos mais pequenos... o aperfeiçoar das técnicas de administarção dos injectáveis.

O transplante não é uma panaceia. Implica também muito trabalho e vigilância, não diminui as preocupações...altera a sua natureza.

Mas penso que tudo vai melhorar quando ele for transplantado o que está seguramente nos vossos planos a curto prazo.

Bem Haja

Marta Campos disse...

Prof. Helena,

Eu quando escrevi este post, imaginei-o "dedicado" a pais ou jovens que vão iniciar agora a diálise peritoneal e que, tal como nós no início, sentem que vão deixar de ter vida própria e dedicar todo o seu dia à diálise. De facto, é possível ter qualidade de vida, mesmo em diálise peritoneal.

Mas fico contente que também tenha conseguido retirar alguma informação para si!! :)

Beijinho.

Helena Jardim disse...

Os médicos aprendem, sobretudo, com os doentes. Aliás, penso que os médicos só ganham conhecimento com os doentes....o resto é informação e informação nem sempre gera conhecimento...
Helena Jardim

Marta Campos disse...

Era bom era que houvesse mais médicos a pensar da mesma maneira, não acha?

Bjs.

Anónimo disse...

Para os que ainda não convivem com a realidade da diálise peritoneal mas que estejam na eventualidade de vir a conviver, é importante que tenham, sempre, em conta que cada caso é um caso.
Por exemplo, o meu filho que começou a fazer DP com 12 anos, só se conectava às 22hrs e fazia ciclos de uma hora até às 06hrs.
Não fazia mais nenhuma troca durante o dia e fazia uma vida normalíssima.
Aliás, como o catéter de ligação à cicladora tem aproximadamente 3,5 mts, mesmo depois de conectado ele continuava a movimentar-se no seu quarto dentro da autonomia que o catéter permitia.
Tudo muito natural.
Conheço casos, no entanto, de crianças mais velhas que o meu filho que têm necessidade de fazer mais ciclos e ciclos de maior capacidade de líquido de diálise.
Não se assustem os "caloiros" que não custa nada nem ficam dependentes de uma máquina.
O meu filho tinha uma frase interessante que era: "Eu não estou dependente de uma máquina, estou é dependente de uma cama para dormir. É indiferente que lá esteja uma máquina ao lado. Desde que me deixe dormir e faça com que eu me sinta bem quando acordar!"

Já agora e para terminar, aqui vai uma dica para a Sra. Marta e para todos os DP's:
Retire o penso ao Miguel antes do banho e analise bem a zona envolvente do catéter. De-lhe banho normalmente e depois do banho faça-lhe o penso.
Se fizer assim, não corre o risco de a àgua do banho e o natural amolecimento dos tecidos, mascararem algum princípio de inflamação ou até façam desaparecer algum eventual exsudado.
Foi uma técnica que me ensinaram no HSM e com a qual me dei sempre muito bem.
Felicidades.
José Carlos Ribeiro

Anónimo disse...

Dra. Helena,
Muito pertinente e 100% verdadeiro o seu parágrafo sobre o transplante.
Num artigo onde se fala de Dp e se tenta, e muito bem, fazer passar a idea de que a mesma não é nenhum bicho de sete cabeças, é importante que se diga que o transplante nem sempre é o paraíso que se pensa e julga.
Então, se falarmos em Tx na pré- adolescência ou na adolescência, teremos muito pata contar.
Conto, em breve, dar-lhes conhecimento da minha experiência de acompanhamento de um transplantado com 13 anos.
Olhem que, se falarmos em termos de preocupações, tenho alguma saudade dos tempos da Dp.
Muita saúde!

José Carlos Ribeiro

Marta Campos disse...

José Carlos,

Obrigada pelo seu testemunho. É sempre bom sabermos como as outras pessoas lidam com os mesmos problemas e que, no meio da doença, há formas positivas de lidar come ela.

O Miguel também se passeia à vontade no quarto dele quando está ligado à máquina e faz todas as tropelias possíveis... :)

Anónimo disse...

Aprendi muito

Caren disse...

Obrigado por todos esses comentários, sou o jeferson do RS, faço hemodialise a 3 anos e 10 meses e quero fazer DP, tinha um pouco de duvidas, foi muito importante para mim ouvir tudo isso.
Um forte abraço e que todos vcs tenham muita saude!!!

Criança e Rim disse...

Bem-vindo Jeferson,

De facto, a diálise peritoneal é uma técnica menos agressiva para o organismo do doente, mas nem sempre se conseguem atingir bons resultados e também não é aplicável a todos os doentes. O melhor mesmo é um transplante! Está inscrito para fazer transplante?

Um abraço,

Marta Campos
Criança & Rim